quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Presa no horizonte

Corro atrás do horizonte, nunca o alcançarei. A imaginação de um campo sem limites, de possibilidades sem limites, me encanta e me faz sucumbir. Onde encontrar a vida, senão agora? No presente em que vivo, em que respiro – aí sou feliz. E o resto do tempo, passo alheia à vida que pulsa.

Presa a expectativas irreais, à vontade de sempre conquistar algo inconquistável, eu caio na terra batida e choro. Um medo da insatisfação e da incompletude me inunda. Mas eu me levanto e sigo – o joelho arranhado, enquanto as marcas que deixei no chão vão se apagando com o vento.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Ele é carioca

São dias de quase-inverno no Rio. Não sabemos por quanto tempo, nem em que intensidade; por isso colocamos nossos sobretudos, nossas botas, nossos casacos de couro.

Eu me lembro de um dia de verão. Eu acreditava que, para ser carioca, era preciso gostar de suar, mas fui pega de surpresa num elevador. O calor me deixava dispersa e com nervoso de sentir minha própria pele tocando nas roupas. Descompostura era o meu nome. Até olhar para a esquerda e ter uma visão delirante: um senhor impecável no seu terno de linho branco, chapéu panamá a coroar sua cabeça. Era mulato, magro, grisalho; todas as suas feições transpiravam dignidade, humildade, orgulho.

Uma senhora perguntou-lhe: você não sente calor? O homem não quis nos humilhar tanto, e por isso falou discreto: eu não estou sentindo calor.

Na rua, o termômetro marcava dezenas de graus celsius.

*****

Mas, no último verão, também havia o homem que não se cansava. Era um japonês, professor de kendo. Com suas poucas e zangadas palavras, incompreensíveis, somadas à expressão samuraica de seu rosto, foi que eu aprendi que é possível manter uma postura impecável mesmo após três horas de treino de luta.

sexta-feira, 5 de março de 2010

O unicórnio nu


Para ler ao som de Comptine d´un autre été de Yann Tiersen

Desço meu carro pelas curvas da estrada, temeroso da névoa espessa que me envolve. Pela fresta da janela, o vento úmido entra fresco e toca meu rosto. Quero pegar o vento, tocar minha pele. Sinto as rugas da testa e me lembro das causas de cada uma. Um emprego perdido, a morte de um grande amigo, o divórcio.

Minha ex-mulher gostava de fazer bolos. Só cozinhava isso. Todo fim de semana, eu sentia aquele cheiro gostoso; ela tirava o bolo do forno e eu o comia ainda quente, ávido pelo sabor. A massa tinha a textura macia da sua boca, e eu me lembrava disso nas horas enfadonhas do trabalho. Fechava os olhos e sentia seus seios comprimidos sobre meu peito, suas coxas rarefeitas nas minhas mãos.

Eu suspiro. O tempo pesa. Cada vinco no rosto dói; deve ser o frio ou a saudade. Os outros carros vão longe, vejo pelos faróis vermelhos. São pingos de tinta tristes. Ao meu lado, percebo, um unicórnio corre, desafiando todo o ecossistema do senso comum. Ele me acompanha, mas com o olhar sempre fixo no horizonte branco.

Como seu correr é belo e leve! Queria ter vivido no ritmo desimpedido do seu trote. Talvez a juventude que perdia a cada dia que tentava ser um homem sério - talvez ela tivesse a alvura desse bicho. Talvez jogando meu terno no lixo, talvez apagando da memória minhas palavras solenes - talvez assim, nu, exposto, entregue, vulnerável, eu pudesse igualar sua pureza.

Resolvo parar o carro no meio-fio. O unicórnio pára também e imediatamente aponta para o chão. A mesma mão que sentiu minhas rugas, eu a passo sobre o lombo do animal. Num movimento seu, a pulseira gasta do meu relógio arrebenta e ele cai. Vou apanha-la no chão, e sinto a grama molhada como os meus cabelos escorridos quando minha mãe os lavava. Meu coração se encolhe suave no colo das minhas lembranças. Pego o relógio; os ponteiros haviam se soltado.


PS: esta crônica está vampirizando "O cavalo nu" de Leonardo João.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Dia de praia

Para Marco

Semana passada, resolvi quebrar minha resistência ao muito suor e sair da frente da mesquinhez do ventilador. Fui à praia com você. Deitada na areia confortável, espiei o mar por quase uma hora, querendo coragem para mergulhar como fazia antigamente.

Hoje, porém, o medo me segura e me frustra, e não só na praia. Eu me escondo na minha fortaleza de auto-proteção, onde minhas boas amigas são as neuroses. Com elas, também me sinto segura. Sem sair do castelo de dentro de mim, vou às lojas e faço compras para tentar preencher o espaço do que não sou ou do que queria ser. Mas, naquele dia, não precisava ser assim.

Você já estava na água quando tomei coragem e... fui! Joguei-me no mar sem garantias nem preocupação. Na água gelada, sentia meu corpo vivo. Ali eu era por inteiro, sem precisar de nada além.

Um minuto de alegria, nem isso, e veio uma onda gigante. Quebrou sobre nós. Dentro daquela tempestade, tive medo que nossas mãos se soltassem. Envolvida naquele barulho uterino, toda a energia fluia sobre mim.

A onda passou. Eu me recobrei e saí correndo da próxima. Na borda do mar, parei, te olhei ainda na água e rimos. Que divertido rir de mim mesma e poder compartilhar isso com você. Respirei fundo, e o ar que entrou pelas minhas narinas chegou a tocar minha alma. O sal purifica.

Você saiu e nos beijamos, iluminados pelo sol que se punha sob o Dois Irmãos. Pena que nada tão bom pode durar para sempre.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Carnaval

- Olha, olha a beleza da Ala das Cenouras! A grande inovação do carnavalesco Emilinho é o dispositivo que faz com que as folhas cresçam, murcham, caiam e voltem a crescer! É impressionante notar o brilho e a opulência dessas cenouras, que refletem bem o estilo da escola. O que você acha, Norberto?

- Bem, a pesquisa da direção de arte foi realmente muito profunda. Os assitentes do Emilinho descobriram que as cenouras eram cultuadas pelas tribos Guaximim-mirim, onde eram vistas como o deus revelador da sabedoria. Porque para eles não era a cenoura, mas o cenouro. Uma referência à estrutura fálic...

- A reporter Edilana Ramalho está com novidades quentíssimas. Fala, Edilana!

- Bem, amigos da rede Otar! [gritando muito] Estou aqui com os integrantes da escola que fazem tudo funcionar. Sem eles, o que seria...? Não seria nada! Ei, você aí! Me dá uma entrevista aí!

- Craro, senhora! Nosso trabalho é muito árduo, empurrando esses carro aregórico igual a uns condenado! Só a cervejinha salva!

- Vanderson! AAAAANDA!... POOOOORRA! FUDEU!

CRUNCH!! CABUM!!

- Meu Deus! O... Olha Norberto! O carro alegórico perdeu o controle e está desgovernado! Vai bateeeeeeer!! Bateu! Derrubou uma caixa de som sobre o camarote dos jurados! Vamos passar de novo para a Edilana. Edilana? Edilaaaana???

- Enquanto não localizamos a Edil...

- Edilaaaaaanaaaaaaaa!!!

- Enquanto não localizamos a Edilana, notem o desfalque que esse problema não está causando à evolução do desfile. Acho que a bateria deveria mudar o compasso para 5 por 1, porqu...

- Olá Augusto! A gente teve que tirar uns estilhaços de vidro aqui pra continuar... Corre, corre, Gil, filma as destaques! Gente, está pegando fogo no carro alegórico, as destaques estão em pânico; a gente vai correr e tentar alcançar! ......................................................................... ............................................... Ufa! Finalmente! COmo VOcês POdem VEr, HÁ uma GRAnde MOVimentação de bomBEIros ao redor do carro, agora que ele parou. Vamos entrevistar o sargento dos bombeiros...

- Sargento não, eu sou só cabo mesmo...

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Recebi uma carta...

Cara Sart,

Não vou perguntar como vais, até porque não quero ouvir o pior. Não quero ouvir estou muito bem, obrigada, espero que estejas bem também. Porque eu não estou bem, e não queria que estivesses feliz longe de mim. Desde o nosso encontro perto do deserto, tu me cativaste e és responsável por mim. Mas será que foste verdadeira?

Quando tu foste embora, eu realmente chorei, realmente sofri. Resolvi sair pelos bosques e buscar a reflexão e o auto-conhecimento. Cheguei nas franjas do deserto e contemplei, olhando no horizonte, o vazio dentro de mim. O oco na minha alma que anos de fugir de caçadores e caçar galinhas me causou. Mesmo com o calor, me arrepiei. De medo, medo de ter me perdido de mim. Então resolvi voltar, e todas as tardes, às cinco horas, ficava olhando a brisa que vinha espalhar a relva; me fazia lembrar dos teus cabelos. Preparava meu coração desde o meio-dia. Eu sigo ritos e tenho todo o tempo do mundo. Eu valorizo a essência, eu valorizo o que fica e o que os olhos não vêem nem os dedos tocam. Como eu, não há mais raposa na Terra.

E como tu, não há mais em todo o universo. Não és mais uma humana qualquer, nem sou mais a mesma raposa, desde que me cativaste. Ai... volta, Sart!

Hum... que fome... Já é hora do desjejum... faz tempo que comi meu último franguinho.

Com carinho,
Baposa

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Vizinhança

Ouço aquele barulho e fico aterrorizada. Chego num cantinho da janela da minha sala, luzes apagadas, e espio a janela do prédio ao lado. Um homem desfere golpes no ar. Sua silhueta macabra lembra a sombra do Nosferatu. Seu braço pesado, que deve segurar um machadinho ensanguentado, despenca, bate com força, e o barulho escorre sinistro pelo ar.

O som é até discreto. Noutras noites, eu ficava vigiando o matagal do morro aqui atrás. Lá no alto, escondidos, moram os índios do mato. De dia, eles costumam descer o morro sorrateiramente para cumprir seus afazeres. Muito suspeito. À noite, só podia, estariam ceifando o mato. Construiriram um barraco camuflado.

Hoje descubro meu engano. O barulho vem do prédio ao lado. Ninguém percebe, só eu, que ali mora um maníaco açougueiro. Ele arrasta corpos até sua cozinha e -- valha-me Deus! -- os esquarteja.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Mimese

Eu roubo as galinhas mesmo e os homens me chamam de oportunista. Eles as criam em cativeiro só para si e têm sede por sangue, o meu sangue. Hoje em especial é um dia em que não tenho sossego. Vem um caçador após o outro eu fujo para qualquer canto. Longe deles miro as galinhas. HUMMM, que delícia de carne....... Amanhã já não lembro mais daquele sabor. Nada me prende: eu pulo sobre ciladas armadilhas saudades. Eu me satisfaço agora, me salvo de tiros logo depois. Viver sozinho, sem laços.
Mas o que você faz aqui? Bem, você não é o primeiro tolo que vem ouvir uma raposa mesmo. Está perdido? Sua inocência me encanta. De repente encontro, no fundo dos seus olhos, o vazio da minha alma. Quero... quero sentir um pouco de dor, não tenho medo. Eu procuro um significado dentro de mim, que perdure por toda minha vida, toda minha lembrança. Ah!! por favor, fique! Eu serei tão especial para você!
É preciso perder tempo para criar laços. Eu ganho plenitude, perco liberdade. Cativeiro... cativar. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Olhos

Uma grande transformação aconteceu ao sentar-me num ônibus. O caminho, conhecido; nenhum acidente, nenhum prédio desbando. Também não houve nenhum súbito milagre com minha vista; Santa Luzia não ouviu prece nenhuma, continuo míope e com os óculos embaçados. A vida dentro e fora do ônibus - tudo absolutamente normal.
Mas meu coração mudou. Como minhas capacidades óticas continuam iguais, só pode ter sido meu coração que mudou, pois tudo o que via parecia novo. Ganhei um novo interesse pela cidade, por sua vida. O Rio deixou de ser caos, eu deixei de ser indiferente.
E, ante meus olhos, havia um buteco quase fechando, garrafas como troféus nas prateleiras - um pé sujíssimo, antiquadíssimo, a desafiar a modernidade, ali na calçada. Um velho decrépito estava sentado e o balconista chegou à porta, pitoresco, mãos na cintura, e me olhou. Parecia me desafiar: "Você aí, que nunca notou em mim! Aproveita que acordou para a vida e olha para o outro lado da rua também!"
No outro lado, um entregador andava de bicicleta. Não era um entregador qualquer: era um rapaz que curtia a brisa noturna, depois de trabalhar um dia inteiro ao sol escandalnte. Vi no seu rosto o prazer.
De repente, ele passou por um casal que se beijava num ponto de ônibus. Meus olhos deixam de seguir o rapaz e param nos namorados. O ônibus acelera. O beijo, o abraço, ficam para trás, mas eu não vou com o ônibus, meu coração fica. Dentro de mim, a vida fica. A cidade é mais bela e eu sou menos cega.