sexta-feira, 5 de março de 2010

O unicórnio nu


Para ler ao som de Comptine d´un autre été de Yann Tiersen

Desço meu carro pelas curvas da estrada, temeroso da névoa espessa que me envolve. Pela fresta da janela, o vento úmido entra fresco e toca meu rosto. Quero pegar o vento, tocar minha pele. Sinto as rugas da testa e me lembro das causas de cada uma. Um emprego perdido, a morte de um grande amigo, o divórcio.

Minha ex-mulher gostava de fazer bolos. Só cozinhava isso. Todo fim de semana, eu sentia aquele cheiro gostoso; ela tirava o bolo do forno e eu o comia ainda quente, ávido pelo sabor. A massa tinha a textura macia da sua boca, e eu me lembrava disso nas horas enfadonhas do trabalho. Fechava os olhos e sentia seus seios comprimidos sobre meu peito, suas coxas rarefeitas nas minhas mãos.

Eu suspiro. O tempo pesa. Cada vinco no rosto dói; deve ser o frio ou a saudade. Os outros carros vão longe, vejo pelos faróis vermelhos. São pingos de tinta tristes. Ao meu lado, percebo, um unicórnio corre, desafiando todo o ecossistema do senso comum. Ele me acompanha, mas com o olhar sempre fixo no horizonte branco.

Como seu correr é belo e leve! Queria ter vivido no ritmo desimpedido do seu trote. Talvez a juventude que perdia a cada dia que tentava ser um homem sério - talvez ela tivesse a alvura desse bicho. Talvez jogando meu terno no lixo, talvez apagando da memória minhas palavras solenes - talvez assim, nu, exposto, entregue, vulnerável, eu pudesse igualar sua pureza.

Resolvo parar o carro no meio-fio. O unicórnio pára também e imediatamente aponta para o chão. A mesma mão que sentiu minhas rugas, eu a passo sobre o lombo do animal. Num movimento seu, a pulseira gasta do meu relógio arrebenta e ele cai. Vou apanha-la no chão, e sinto a grama molhada como os meus cabelos escorridos quando minha mãe os lavava. Meu coração se encolhe suave no colo das minhas lembranças. Pego o relógio; os ponteiros haviam se soltado.


PS: esta crônica está vampirizando "O cavalo nu" de Leonardo João.